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Amor ou abuso?

Quando eu confundo amor com abuso, ou abuso com amor, eu escolho pagar o preço que for para permanecer onde estou, seja o abuso que for. A minha menina clama por ser vista e por ser considerada. Ser invisível e não ter lugar é uma dor impossível de sustentar. Quando minha menina comanda a cena, qualquer migalha é melhor que nada – e o mínimo recebido é sorvido com gana, urgência, pois para ela “se bobear já era, não tem mais não…”

Quando vejo o mundo pela percepção da minha criança, amor e vida são iguais a um deserto. Dentro desse deserto, toda gota que chega precisa ser bebida rápida e eficientemente. Se eu não for capaz de fazer isso agora, morro – ponto final.

Sim, essa é a cena que a minha menina vê.

Diante desse quadro, abrir mão da “gota” é morrer. Morrer de dor e de secura, morrer de rejeição e abandono, morrer sem ter tido o direito de existir, de ser, de viver.

Dizer para ela que isso não é amor, que isso é migalha e ilusão – e que se chega “vestido” assim é abuso – é responsabilidade minha.

Contar a ela que amor real não é uma gota no meio do deserto, não é um espaço no qual preciso me diminuir ou me mutilar para caber ou encaixar. Não é desistir de mim para ser aquilo que “esperam” que eu seja. Dizer a ela que tudo isso é abuso e não amor, é responsabilidade minha.

Mas isso é trabalho diário, pois quando estou na minha criança, resisto a me ouvir. É um movimento que exige presença e força de vontade, além de amorosidade. Preciso me dar o amor e o tempo que não recebi. Como adulta, preciso sustentar a fé que minha criança não tem. Isso porque, dentro de mim minha menina continua acreditando que o amor real é que não existe, que ele é que é ilusão.

Acredita que é preciso sim se mutilar, diminuir, submeter, abrir mão de si e até mesmo deixar de existir. Que é preciso deixar de ter vontades, desejos e sonhos próprios. Que é preciso estar disponível, ser útil, não brigar, não errar, sempre, sempre, sempre e mais um pouco… Nessa ilusão e nessa exigência tamanha, minha menina cria a dor na qual me enredo.

Assim, toda vez que “pisco”, lá corre ela de novo ao lado do pé do outro. Agarrada, promete que dessa vez ela vai fazer certo. Que, dessa vez, vai caber, vai ficar do tamanho adequado, vai obedecer.

Digo pra ela de novo que isso não é amor, é abuso. Chamo ela mais uma vez e digo que, dela, só eu posso cuidar. Chamo ela pro meu lado, novamente, e conto que se é essa a dinâmica, não é amor real. É abuso.

Se quando criança entendi que era assim que o amor chegava, existia e funcionava, como adulta posso dar um basta e mudar a percepção. Posso sentir o que sinto, ser quem sou e dar o que (e apenas “o que”) tenho para dar. E assim, e só assim, posso ser amada. E a partir disso, quando conseguir sustentar essa nova dinâmica, será amor e não abuso.

Mas pra isso acontecer, preciso aprender a dar antes de receber. Preciso aprender a me permitir arriscar meus sentimentos, meus melhores sentimentos. Preciso aprender a dar a mim, absoluta e incondicionalmente, e depois ao outro. Num momento da vida, isso me abrirá para vir a receber do outro, que conseguirá também me dar de forma equilibrada e madura. Aí, estarei próxima do amor real e mais longe da dinâmica do abuso.

Enquanto isso, vou olhando para minha menina. Vou contando a ela as distorções que ela vê e cria. Vou contando e reconhecendo os abusos que nos envolvem. Vou me abrindo para sentir a dor que a levou a nos colocar lá, e que eu deixei acontecer. Sinto a raiva que está nesse lugar, assim como a dor de achar que não tem outro lugar para estar, que a única opção é essa submissão. A dor de ter tanta certeza da sua insignificância e invisibilidade que não percebe a própria história, não se vê nem se reconhece. Que acreditava que sua história de abuso não era (bem) abuso. Abuso é o que acontece com as outras mulheres, irmãs, amigas. Com ela, foi resultado de frescura, de não ter feito o suficiente, de não ter sido forte o suficiente – ou “pequena” o suficiente.

Para minha menina, minha história de abuso não era uma história de abuso, era um erro cometido e que PRECISAVA ser consertado, que precisava continuar tentando, e tentando, e tentando… Afinal, a culpa era dela, não tinha sido tolerante o suficiente, boa o suficiente, amado suficiente, se sujeitado o suficiente, se calado o suficiente…

Não, minha menina. Essa história precisa acabar aqui. O seu abuso não é menor que o da outra, não tem uma importância menor e também tem lugar nessa conversa – ele também deixa marcas profundas. Seu abuso é real, é dolorido. E sim, ele tem lugar.

Você, minha menina, tem lugar. Você tem importância, tem existência. Venha, vou cuidar de de você, hoje e sempre. Vem, já cuido de você, já vejo você, hoje e sempre.

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